29/03/2009

...Vidas...


«Não, fica. Fica.» Tornei a sentar-me, relutante. «Acho que, depois do que fizeste, tens direito a estar connosco nos melhores momentos.»
Camila pareceu ficar um pouco mais tímida, ao escutar as palavras do avô. «Tenho receio de o deixar assim, avô. Tenho medo.»
«Medo de que eu morra?», perguntou Millhouse Pascal, a voz saindo-lhe do fundo da garganta.
«Por favor. Ninguém morre de uma fractura na bacia. Não diga essas coisas. Tenho medo de que fique sozinho. O Gustavo já se foi embora, a Nina também.»
«Tens medo da minha solidão, porque temes toda a espécie de solidão. Olha para mim. Tenho mais de setenta anos. A solidão é uma benesse, e não um tormento. Vivi mais vidas do que um batalhão de homens. Para além disso, enquanto tiver o Artur, nunca estarei sozinho.»
«Tem mais do que o Artur, agora», disse Camila, olhando para mim. Millhouse Pascal também me olhou.
«Sim, por agora. Mas as pessoas jovens acabam por seguir as suas vidas. É o curso natural das coisas. Deposito, porém, grandes esperanças neste rapaz. É um rapaz especial.»
Falavam de mim como se eu não estivesse ali.
«E tu, estás pronta?» «Para partir?» «Para deixares tudo isto para trás.»
«Não fale assim. Virei visitá-lo sempre que possa.»
«Visitares, não visitares... É a mesma coisa, no fundo.
Quando deixei este país, pouco mais velho do que tu és agora, ainda desconhecia o efeito que o mundo tem em nós. Partimos de um lugar achando que um dia voltaremos; vivemos tudo de coração aberto; e, quando damos por nós, somos incapazes de regressar
«O avô já regressou há muitos anos.»
«Regressei? Será mesmo verdade?»
«Está aqui, não está?»
«A presença física não é prova de nada. O lugar onde vivemos é o lugar que habitamos em espírito. E, em espírito, nunca regressei. Estou espalhado pelas almas de todas as pessoas que conheci, de todas as coisas que, por lhes ter tocado, modifiquei. Irás aprender isso com o tempo.
Um homem não é uma entidade, são muitas e, se não nos decidimos, a tempo certo, por uma delas, acabamos feitos em retalhos.»

Excerto de "As 3 Vidas" de João Tordo

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