29/03/2009

...Consigo?!...


- Pela parte que me toca, penso muito no passado. Sobretudo a partir do momento em que me pus em fuga através do Japão. E sempre que me esforço por recordar, vêm-me à lembrança uma quantidade de coisas... e olha que estou a falar de memórias vivas e poderosas. Coisas, que eu julgava desde há muito esquecidas, de repente surgem diante de mim sem razão aparente. Um processo muito interessante. Que coisa estranha e louca ao mesmo tempo, a memória. É como se tu enchesses uma gaveta inteira com uma quantidade incrível de coisas que não servem para nada. Ao passo que as coisas importantes, essas passamos a vida a esquecê-las, umas atrás das outras. Korogi continua de pé, com o telecomando na mão.
- Sabes o que te digo? - prossegue ela.
- Quer-me parecer que as recordações são o combustível que permite às pessoas continuarem vivas. Agora, se essas recordações têm ou não de facto alguma importância concreta, isso pouco ou nenhum significado tem desde que as funções vitais estejam asseguradas. É apenas combustível, mais nada. Anúncios nos jornais, livros de filosofia, revistas cheias de pornografia, um grosso maço de notas de dez mil ienes: quando deitas um fósforo e lhes pegas fogo, não passa tudo de papel. O fogo, enquanto arde, não pensa: «Oh, isto é Kant!». Ou: «Oh, um artigo na edição da tarde do jornal Yomiuri», ou ainda: «Ena, mas que belas mamas!». Para o fogo, são apenas pedaços de papel. Aqui neste caso é a mesmíssima coisa. As recordações importantes ou aquelas que não têm tanto peso quanto isso, umas e outras tornam-se, sem distinção, combustível. Korogi faz uma sinalefa de concordância para si mesma, antes de prosseguir. - Sabes, acho que se não tivesse este carburante para queimar, se não tivesse essa tal gaveta cheia de recordações dentro de mim, há muito que me teria deixado ficar caída no fundo de alguma valeta e deixado morrer. Só porque posso trazer à luz do dia as memórias que essa tal gaveta encerra - tanto as lembranças importantes como as outras - é que me aguento no balanço e consigo levar por diante o pesadelo que representa esta vida.
Alturas há em que chego a pensar que já não aguento mais, mas, depois, de uma maneira ou de outra, a verdade é que consigo.


Excerto de "After Dark - Os Passageiros da Noite"
Haruki Murakami

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