25/10/2010

... não tens vergonha?! ...


«Ser feliz por momentos é algo de que não se deve ter vergonha. Momentos que o fim torna ridículos.

A felicidade, como o amor, é um sentimento ridículo. Mas a felicidade, como o amor, só é ridícula quando vista de fora. A felicidade, como o amor, só é ridícula antes ou depois de si própria. A felicidade, são momentos que, no seu presente fugaz, são mais fortes do que todas as sombras, todos os lugares frios, todos os arrependimentos. Ser feliz em palavras que, durante essa respiração breve, mudam de sentido.

E nem a forma do mundo é igual: o sangue tem a forma de luz, as pedras têm de nuvens, os olhos têm a forma de rios, as mãos têm a forma de árvores, os lábios têm a forma de céu, ou de oceano visto da praia, ou de estrela a brilhar com toda a sua força infantil e a iluminar a noite como um coração pequeno de ave ou de criança.

Momentos que o fim torna ridículos. Momentos que fazem viver, esperando por um dia, depois de todas as desilusões, depois de todos os arrependimentos e fracassos, em que se possa viver de novo, para de novo chegar o fim e de novo a esperança e de novo o fim.

Não se deve ter vergonha de se ser feliz por momentos. Não se deve ter vergonha da memória de se ter sido feliz por momentos.»

in, "Uma Casa Na Escuridão"
José Luís Peixoto

15/10/2010

...ousa...

"Odeio essas almas pulsilânimes que,
por muito preverem consequências,
nada ousam empreender. "
(Moliere)

12/10/2010

...procuro...


Procuro alguém
que me salve de mim mesma,
do abismo que crio

(...)

insanidade dos meus pensamentos.

Procuro por ti,
à espera que em mim vejas
a tua salvação,
como eu vejo em ti a minha.

pensamentos incertos
da praia secreta

10/10/2010

...não me perguntes...

Eu não sei por que a amo. Cada vez mais não sei.

Pode ser pelo seu pescoço que se levanta para ganhar altura quando estamos abraçados. Ou será que é pela forma em que dobra as pernas no sofá? Ou quando se contorce em espiral com beijos nas costas? Eu não sei por que a amo. Será que pela sua preguiça, que se enrola em mim de manhãzinha? Ou pela sua disposição de dar a volta por cima? Eu já parei para pensar por que a amo, mas lamento, não sei. Realmente não sei. Talvez seja pelas sobrancelhas que falam antes dos olhos. Ou pelo umbigo que inicia a mão. Ou pelo copo que você balança antes de beber, para convencer a água a partir? Tantos homens têm um motivo certo para amar, definido como um emprego, e você foi escolher logo um que nada tem a dizer.


Será que é pelo amor aos filhos, excessivo, que sempre me inclui? Ou pela sua vontade de fazer mercado depois do almoço para gastar menos? Será que é pelo modo como canta, o modo como dança, com os braços acenando em linhas sinuosas como fumaça de chá? Será que é pelo toque em meu joelho enquanto dirijo? Pela sua respiração suspensa na penumbra? Ou pelas nossas saídas de madrugada para encontrar sorvete em botecos? Será que me apaixonei pelo seu texto e quis ser seu personagem? Ou pela sua pressa de avisar que chegou, apertando o interfone mesmo com as chaves? Ou quando diz que está com frio no cinema? Ou quando fica muda querendo voltar ou quando fica ruidosa querendo passear? Ou quando pede que eu fique em casa mordendo o lábio de cima? Ou quando me enfrenta com raiva e me diz todas as verdades sem ao menos pedir para sentar? Ou quando sopra os machucados, de quem herdou o costume de soprar machucados mesmo quando não existem? Ou quando fica bêbada e declara que está bêbada para eu me aproveitar? Será que é pelo sua predileção em comprar presentes, sempre dando mais do que recebendo? Ou pela tapeçaria no fundo de suas bolsas, com notas, moedas, chicletes, batons e brincos avulsos? Será que a amo por que me irrita a viver mais? Será que a amo por que não me deixa a sós comigo?

Eu juro que não sei por que a amo. Todo dia você se acorda querendo ouvir, eu pressinto, debruçada em meus ombros à espera do sinal, do cartão, das flores, da segunda aliança que é um par de palavras. Mas não descobri e não finjo. Entenderá que faltam motivos, só que sobram motivos. E dificulta-me pensar que se ama por motivos. Ama-se por insinuações.

Será que é pelo seu medo de sangue? Pela sua infância vesga? Pelos seus joelhos esfolados nos móveis? Pela seus amores frustrados? Pela sua letra arredondada nas vogais? Pela sua insatisfação com as roupas na hora de sair? Pela ânsia em atender o telefone com a esperança de que seja eu a dizer por que a amo?
Eu não sei por que a amo. Não me fale. Quem sabe deixo de amar.

Fabrício Carpinejar

07/10/2010

... caderno ...

«Eu, segurando o caderno e anotando frases,
limitei-me a registar as mudanças.

Fui uma sombra ocupada a registar sombras.

Mas como conseguir agora,
sem um eu,
sem peso e sem ilusões,
num mundo sem ilusões e sem peso?»
Palavras de Bernard
in As Ondas de
Virginia Woolf

... inspiração ...




... sinto, por vezes,
um temor espantado das minhas inspirações,
dos meus pensamentos,
compreendendo quão pouco de mim é meu...

fernando pessoa